terça-feira, fevereiro 28, 2012

 

Destaque

Sucelo um Deabulus do Barroso castrejo

Emparedado no sub-coro da igreja de Vilar de Perdizes.
Pintado com cores vivas, possuía olhos enormes que, tendo o fulgor e a capacidade fulminante do relâmpago, tudo viam, infundindo grande temor nos crentes ou nos prevaricadores.
O martelo que segura na mão direita e o seu proverbial pénis transmitiam uma mítica capacidade fertilizadora a humanos, animais e campos. A ele se encomendavam as virgens e mães de família, com pedidos de avultada prole e os lavradores solicitavam mais crias e melhores colheitas, lançando depois pequenos machados rituais, de pedra ou de metal, sobre as sementeiras.

Em muitas aldeias de Barroso contam-se histórias antigas com transmissão oral trans-secular, relativas à existência de homens com força mítica. Em Solveira, à vista de uma lasca monolítica de cerca de quatro metros por um e meio de largo, que serve de plataforma a um dos três vãos integrantes da ponte de Mandiz, uma bela ponte roqueira castreja, diz-se que foi transportada à cabeça de uma mulher que simultaneamente fiava uma roca de lã. Também se conta que os habitantes dos castros de Solveira e de Pedrário, dispondo apenas de uma marra comum, a projectavam de um monte para o outro, quando alguém precisava dela.
Histórias como esta parecem consolidar a teoria de que, ultrapassadas as fases de religiosidade animista neolíticas e mesolíticas, durante o longo período da Indo-Europeização, os povos procederam ao endeusamento de parentes, já desaparecidos, que teriam assumido um comportamento invulgar e que, de alguma forma, se notabilizaram por determinadas características únicas, fossem elas técnicas, espirituais ou de invulgar força física.
Muitos destes deuses chegaram até nós pela epigrafia, pela estatuária e pela numismática.
Do período romano, muitos autores, sobretudo Lourenço Fontes e Rodriguez Colmenero, têm amplamente divulgado alguns modelos epigráficos regionais, como o altar ao deus Larouco, em Curral de Vacas, no qual uma mulher chamada Ama, filha de Pitilo, solicita a Larouco saúde ou benesses para o seu marido, as aras de Vilar de Perdizes, uma dedicada a Larouco, ped(roni) máximo e outra idêntica dedicada por Capito Carminius a Júpiter, ou a ara de Equales, também dedicada a Júpiter, encontrada em S. Vicente da Chã (1).
Na capela da Asunción, na vizinha aldeia galega de Baltar, existe ainda outra com dedicatória a D (eo) Reve Larauco por Vallius Aper (Le Roux e A. Tranoy).
O povo encomendava-se também a outros deuses, de carácter mais restrito, como o deus Rancero, um deus indígena, como nos conta a inscrição de Rameseiros, em Vilar de Perdizes (2).
Haveria outros com provável penetração na região do Alto Barroso, como Bandue Verubrico, referido numa inscrição encontrada na vizinha aldeia galega de Vilaça, a cinco quilómetros de Verin. De carácter local seriam também os Lares Belaecis, lavrados numa dedicatória de duvidosa leitura em Pitões (3).
O estudo pormenorizado destes deuses, excede o âmbito desta pequena exposição, pelo que fomos sucintos na sua abordagem, achando mais importante o aprofundamento de um caso pré-romano, referente a uma estatueta em alto relevo existente na igreja de Vilar de Perdizes de que nos deu conta o nosso amigo P. Lourenço Fontes, já há alguns anos.
M. P. Garcia-Bellido, faz referência à existência de duas téseras com epígrafe N CALECI, um étnico celta, como calaeci ou o oppidum barrosão de Caladunum, responsável pela sua emissão, onde se faz referência ao deus Sucellus, estabelecendo uma possível ligação entre o culto de Hefaístos-Vulcano e este Sucellu (4). Hefesto, um deus grego, Vulcano, o seu equivalente romano, e o deus galo/celta Sucello, são representados empunhando um martelo ou malho de trabalhar o ferro, artefactos que também acompanham Thor, Odin, ou o Dagda irlandês que, em vez de machado, empunha uma maça (5).
Não é consensual entre os especialistas que Vulcano seja protector dos metalúrgicos e ferreiros. Pensa-se que seria antes o protector do fogo doméstico e dos incêndios, já que as vulcanalia da Roma antiga eram celebradas a 23 de Agosto, depois das colheitas, coincidindo com o pico máximo dos incêndios que geravam elevados prejuízos para os camponeses.
Estas festividades pagãs, também celebradas na península, persistiram até muito tarde, pois S. Martinho de Dume, no século VI da nossa era, em de corretione rusticorum, ainda exortava os povos do N.O. a abandonarem as referidas festas.
Succellus era uma divindade gala, venerada nos vales do Ródano, Reno, Saona e na Germânia. Era o deus da morte, do raio e do trovão, e o protector das actividades mineiras e das riquezas do subsolo. Com a entrada dos romanos na península confunde-se muitas vezes com Silvano, deus dos bosques e das colheitas e mesmo com Júpiter. Casado com Nantosvelta, uma deusa equivalente de Hera, era um deus abrangente e poderoso. César, nas suas notas Sobre a Guerra Gaulesa, trata-o por dis pater, ou pai dos deuses (6).
Em versão romanizada, era representado com um martelo numa mão e um pequeno pote na outra e, por vezes, acompanhado por uma bolsa de dinheiro, um tonel ou um cão. Como Silvano, vestia-se com túnica curta e botins. No bronze de Mours tem uma pele de lobo sobre os ombros e um maço na mão, à semelhança de Hércules, vestido com a pele do leão de Nemeia. A presença de um maço ao lado de uma pomba no tímpano do edículo da Fonte do Ídolo, em Braga, parece demonstrar também alguma relação com o deus Tongoe Nabiagoi (3).
Foram identificadas imagens deste deus nas zonas mineiras de Vellaricos, Badajoz e na região da Bética (4).
O culto destes três deuses, Hefesto, Vulcano e Sucelo, é revestido de alguma ambiguidade e sobreposição iconográfica, patentes nas imagens existentes nos museus de Beaune e no de Moura, no colosso de Pedralva e no deus representado com duas cabeças e um só martelo, que persistiram metaforizados em algumas tradições e festas populares, como na festa dos Santinhos Gémeos, do Deusinho e do deus Manquinho, bem com nas celebrações de alguns santos da Igreja, como S. Gens, S. Bartolomeu e S. Miguel.

O deus do malho-rodeiro, no museu de Beaune, o deus do martelo do museu de Moura, o colosso de Pedralva, recolhido por Martins Sarmento, Lycaon, patriarca dos ferreiros, a que alude o Génesis, o deus Manquinho, inferiorizado por um ataque de Lyco, um homem-lobo, o deusinho (deabulo> diabo), o Selu (Senhor), os Santinhos Gémeos, um deus com duas cabeças e um só martelo, que persistem em algumas festas populares, estarão ligados ao culto de Vulcano, embora com nomes diversos. Na tradição católica, parecem ligados ao culto de S. Gens.
Estes antigos cultos pagãos persistem em várias localidades do norte de Portugal. Ilídio de Araújo, num excelente trabalho em que analisa e disseca a inter relação de determinados factos e fenómenos sociológicos, antropoculturais, hagiológicos, históricos, mitológicos e relatos do Antigo Testamento, sem aparente contributo arqueológico, constata a existência de várias tradições ligadas a este culto pagão no antigo concelho de Monte Longo, no alto Vizela e na serra da Lameira, que suscitam no leitor muitas dúvidas e interrogações, perante tão grandes coincidências (7).

O alto-relevo existente na igreja de Vilar de Perdizes, parece-nos uma representação pré românica do deus Sucelus, ligado à fertilidade, protector das colheitas, dos ferreiros e dos mineiros, um deus barrosão genuíno, sem qualquer referência epigráfica conhecida na região.
O culto desta divindade acompanhou os clãs celtici oriundos da Gália e da Germânia que, após breve estadia no sul da península, demandaram o NO, em busca de riquezas minerais, sobretudo estanho e ouro, tendo atravessado a região metalífera de Barroso entre o século VII e o século II a. C., quiçá antes. A cultura destes povos integra os modelos clássicos de Indo-Europeização.
Numa tentativa de por termo ao paganismo, a Igreja determinou que, a 24 de Agosto, se fizesse a festa de S. Bartolomeu, precisamente o dia seguinte à data da ancestral celebração das vulcanalias. Este santo terá aprisionado o demónio, libertando-o, num gesto de benevolência, durante um dia. Diz o povo que, a 24 de Agosto, anda o diabo à solta.

O pagus de Celo e a terra de Baronceli

Ignoramos o âmbito e a extensão do seu culto mas, perante a evidência linguística, como tentaremos demonstrar, o deus Sucelo foi venerado, a alguma distância dos castros vizinhos, como é próprio da cultura castreja, na veiga de Vilar de Perdizes, em Penascrita, um pequeno templo situado num vicus próximo da via XVII que, mesmo durante o período romano, ostenta evidências de um culto antigo, atribuído ao Bronze Atlântico. Esses pequenos templos eram genericamente denominados pelos romanos por Fana ou sacella (8).
Algures na veiga da Senhora da Saúde e nas imediações de Penascrita, viria a ser o Soelo de que falam as inquirições de D. Afonso III, em meados do século XIII.
Para o mesmo local, propõe J. Alarcão a localização do pagus de Celo, enumerado no Parochiale Suevum no ano 569, embora sem adornar a sua teoria com qualquer documento que não seja a pura distribuição geográfica das paróquias atribuídas à Sé de Braga nesse conclave, além da existência de variado espólio superficial, habitual em locais romanizados (9).
A veneração regional de Sucelo, parece-nos um contributo importantíssimo para a localização definitiva da paróquia suévica de Celo, que apesar de ser designado por pagus, em termos de área e população, devia ser maior que muitas paróquias enumeradas no Código de Teodomiro.
Em meados do século VI, a Fé e o poder persuasivo de S. Martinho de Dume, amoleceram o paganismo dos barrosões, que se converteram à doutrina de Jesus de Nazaré. O pequeno deus, ou deabulus, como então se dizia, foi gradualmente relegado para o esquecimento perante a omnipotência do Deus de Israel, sendo provavelmente seguido apenas por um grupo minoritário, por mais alguns anos. Contudo, tinha os seus dias contados.
A primeira medida tomada pela Sé de Braga, logo após a provável sacralização de uma pequena igreja privada local, foi a cristianização óbvia do próprio nome do vicus que tinha recebido o nome de Sucello, o deus local, transformando-o em Celo, ou Coelum, que significa o Céu ou o Paraíso dos cristãos.
Apesar desta intervenção da Igreja, que tentou eliminar o radical antigo-europeu su-, de onde provém o termo latino sus, que significa porco, o povo nunca perdeu a terminologia milenar a que estava habituado, pois em muitos locais o ápodo de porco sujo é um dos nomes populares porque é conhecido o demónio (deabulus). Da mesma forma se manteve o termo Selu (7), o senhor, de que fala Ilídio de Araújo, ou o casal de Soelo, referido em 1258, na Inquirição de Vilar.
Nas décadas e séculos seguintes, uma antiga vila romana, nas proximidades de Celo, foi crescendo em área, produção agrícola e serviçais, transformando-se em centro polarizador dos fundi em seu redor. O seu abastado proprietário terá erigido a sua própria igreja, sob protecção do Arcanjo S. Miguel, cuja maior façanha difundida pela Igreja, foi aprisionar o Diabo.
Por esse tempo, uma pedra tosca existente no Soelo, retratando um deabulo (pequeno deus) olharapo e munido de um pénis acavalado, apesar de menosprezado e penumbrento, continuava a alimentar os medos e a superstição dos católicos medievais.
Para sossego dos crentes foi sepultado, ou emparedado em posição horizontal, no sub-coro da igreja de Vilar de Perdizes, o espaço mais profano do templo, apenas frequentado pelos malandros e pelos que preferem a galhofa à oração. Contudo, foi confirmado como sendo o local mais seguro para agrilhoar um presidiário tão versátil e escorregadio que, na perenidade dos séculos, teria S. Miguel como garante da sua inactividade, pela protecção e permanente vigilância de Padroeiro.
A igreja de S. Miguel de Vilar de Perdizes e a de Lucenza, na Galiza, viriam a ser sagradas por D. Pedro, bispo de Braga, nos finais do século XI (2). É provável que a localização actual da imagem deste deus pagão se deva a um restauro posterior do templo.
A localização definitiva do pagus de Celo, só possível com a colaboração arqueológica, é de enorme importância histórica, permitindo também determinar a extensão da terra de Baroncelli, uma região com avultadas rendas, cuja posse terá aberto um conflito judicial entre os bispados de Braga e Orense em 1078, uma terra com múltiplos registos na documentação medieval, sobretudo no Tombo de Celanova, que se estendia desde o Couto, Torre de Ervededo e Chaves até terras de Monterrey, na Galiza. Para ocidente parece englobar as aldeias de Vilar, Solveira e Gralhas, cuja existência está documentada no século XI, e algumas aldeias galegas até à encosta sul do Larouco, ou seja, grande parte do que se julga ser o antigo território Búbalo.
Uma intervenção no terreno efectuada por agentes devidamente credenciados seria fundamental para que se esclareça a localização do pagus a que foi atribuído o número vinte e oito no Parochiale Suevum, um tema que tem consumido a paciência dos historiadores.
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1- CARVALHO, Carla e ENCARNAÇÃO, José, Duas epígrafes de Montalegre (Conventus Bracaraugustanus), Ficheiros Epigráficos, U. de Coimbra, 2006.
2- COLMONERO, A. Rodrigues, A la Vera del Larouco: reflejos de la Huella Galaico Romana. Revista Aquae flaviae, Nº 41, 2009.
3 - OLIVARES Pedreño, Juan Carlos, Los Dioses de la Hispânia Céltica.
4 - GARCIA-BELLIDO, Maria Paz, Bronces y Religión Romana, em Actas del XI Congreso Internacional de Bronces Antiguos, Madrid, 1993.
5 - HUTTON, Ronald, The Stations of The Sun, Universidade de Oxford, 1996.
6 – JÚLIO CÉSAR, De Bello Gallico, VI, 18, 1.
7- ARAUJO, Ilídio Alves, Vestio Lonieco e os Argonautas, Revista de Guimarães, 1999.
8- BERGIER, Nicolas, Histoire des Grands Chemins de L’Empire Romain, livro II.
9- ALARCÃO, Jorge de, As Paróquias Suévicas do Território Actualmente Português, Religión Lengua y Cultura Prerromanas de Hispania, Universidade de Salamanca, 2001.


Fernando Calvão

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