segunda-feira, maio 21, 2007

 

Opinião

A Minha Terra - 3

Conta o meu pai que, antigamente, depois de um dia de trabalho de sol a sol, sem vencimento, debruado sob o peso dos molhos de centeio dispostos em medas, no calor do verão e da malhada tradicional, não subsidiada, o povo, alegre de vinho, que lhe transmitia valentia sobrenatural, saltava ao som da velha concertina, divertindo o rico com a sua resistência ao cansaço e a sua resignação à servidão que a necessidade lhe impunha. O pão-de-ló abria-lhe o apetite para mais um copo. E o rico pensava: "com festas e bolos se enganam os tolos".
Hoje, o disco mudou, mas a ária é a mesma. A área da cultura é que é outra. Nem trabalho nem dinheiro também. O povo parece contentar-se com as festas e os bolos. As festas, acontecimentos desportivos e culturais são sobejamente difundidos pela imprensa, porque, para isto, não se requer o secretismo de outras actividades, bem pelo contrário, se quanto mais divulgado é o evento, mais "gente" e "benefícios" ele traz ao nosso povo.
Tal como no tempo do nosso primeiro Afonso, organizam-se torneios, armam-se os cavaleiros, enfeitam-se as damas, as ruas e a corte. Mais de meia centena de bandeiras exibe parola e atrevidamente, nas rotundas do feudo, o fictício sucesso e bem-estar dos habitantes da minha terra, colada à "pista", a escassos quilómetros da vila.
No "week end" anterior à peregrinação de treze de Maio, realizaram-se, na minha terra, as já habituais corridas, agora conhecidas como "rally-cross" desde que, a solidariedade (quer dizer, subserviência) dos descendentes do nosso Afonso I os uniu aos grandes-bretões e seus parentes, na ampliação e cimentação do império linguístico anglo-saxão, como já tinham feito, noutros domínios, em Aljubarrota, em Methween, no território do mapa cor-de-rosa, na Índia do Pandita, em Timor do Ramos Horta, na cimeira dos Açores e com o Bill Gates do choque tecnológico.
Eram várias dezenas de "justadores", com milhares de cavalos cada um, e mais de 30.000 visitantes, segundo dados colhidos junto de fontes de divulgação cautelosamente credíveis, talvez o dobro junto de outras fontes de divulgação, deslocando-se para pelejar no hipódromo da minha terra.
Tanta montada e tanta gente, em número bem superior ao conjunto dos habitantes do concelho, só se teria visto no condado, no dia das últimas eleições autárquicas. Mas agora todas as despesas de deslocação eram por conta dos visitantes, não sendo preciso alugar autocarros para França, Andorra, Espanha ou Chã.
Foi ao presenciar este fenómeno migratório que alguém disse para os seus bretões: "A minha terra é um jardim. Se fosse uma ilha, era muito mais jardim, só com o inconveniente de o não poder alargar para Baltar, Meixedo ou Sendim. A minha terra, mesmo sem ter à porta o mar, é muito visitada por terra e pelo ar. Milhares de cavalgaduras roncadoras ou silenciosas máquinas voadoras contradizem o abandono demográfico permanente, progressivo, irreversível. E não é verdade que o funeral da escola coincida com o alargamento do cemitério. Não é verdade que, em breve, a minha terra será apenas um cadáver de feições e tradições adulteradas que os seus filhos recordarão, só uma vez por ano, antes do regresso eterno do Outono".
Na verdade, o imediatismo do lucro fácil e rápido dá os seus frutos com as festas pacóvias, como veremos. Numa época de crise não necessária e de uma contenção de despesa pública publicitariamente necessária e obrigatória, a minha terra ficou mais rica com o evento.
"Alguns" convidados abasteceram-se, gratuitamente, nas bombas do Multiusos que bem estava a precisar de justificação de utilidade. Não se sabe se os contribuintes acordaram, ou não, em ceder voluntariamente parte dos seus impostos para tal "liberalidade" do poder, mas o que é certo é que, directa e comprovadamente, o povo nada pagou. E ainda sobrou verba para dar de comer a alguns "pobrezinhos donos de albergues".
Nada parece indicar que a ASAE ou as Finanças tenham o dever de investigar como se estabelecem os preços e se apuram os ganhos, na minha terra, nem como se pode exercer, pontualmente, a profissão da restauração que deveria ser fiscalizada por autoridades sanitárias e económicas, entre outras. Na minha terra, a actividade fiscalizadora das actividades económicas, repressiva e acometida da cegueira própria do corporativismo plutocrático, opta por desancar meia dúzia de ciganos, nas feiras desse país profundo, e despojá-los dos bens contrafeitos que os próprios dizem ter adquirido nas grandes superfícies industriais e comerciais devidamente autorizadas.
Desta realidade não dão conta os fazedores dos anais da República, vigiados e controlados de perto pela alta autoridade do governo, os quais, como alguma imprensa local, ainda vivem como viviam, na Idade Média, os cronistas do reino: da adulação dos senhores e da subsequente tença anual.
A gente da minha terra sabe que tem o direito de ser bem informada e de tecer críticas à obra de fachada que se vai divulgando repetida e abusivamente. Sabe também que a bosta das ruas, bem mais aceitável que o estrume semeado por forasteiros sem pudor nos terrenos envolventes dos locais dos torneios, não é tão poluente como a palavra falsa ou a omissão da verdade.
"As justas" minuciosamente programadas resolvem-se sempre a contento dos "restauradores", que representam o progresso da minha terra, sobretudo nas feiras do fumeiro, da vitelinha e das sextas-feiras, treze. Por este motivo, é possível que a minha terra, que tem apenas pensões e funcionários, venha a ser povoada só por camareiros quando fecharem todas as repartições. E a causa não é a falta de recursos que motivem a criação de empregos na República, mas de dinheiro para alimentar os exércitos criados pela indigência, pelo subsídio fácil e pela habilidade esbanjadora dos governantes.
Quando todo o território estiver convertido ao marasmo e à inércia da concupiscência senhoril, outro Sancho se levantará, talvez, com ordenações papais da capital para tentar repovoar o reino. Até lá, o Pepe, ali ao lado, nas terras de Sua Majestade lá vai empatando a deserção total, abrindo as mãos para algum trabalho, na sua fabriqueta, enquanto a Sandibomba corre para a pista, nos dias de festa, e ah! … e os bolos!
Por MBM

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