terça-feira, julho 08, 2008

 

Opinião

Torga: 52 anos depois de visitar Boticas

A Câmara de Boticas assinalou dia 19 Junho a primeira visita de Miguel Torga a essa ridente e prazenteira vila do Baixo Barroso, com o descerramento de uma sugestiva lápide, junto à sede autárquica com a mensagem que aí lhe saiu em 7/9/1973. No auditório José Sousa Fernandes decorrera uma sessão para apresentar o livro «Entre quem é» de Maria Assunção Morais, acto presidido pelo Engº Fernando Campos e com dissertação do académico Rogério Borralheiro e da autora. Meia centena de participantes que olhavam para o relógio por causa do jogo que nos afastou do Euro: Portugal-Alemanha. Ficámos todos com vontade de mais porque o tema Torguiano dá para muitas horas sem que canse ouvir-se falar dele.
Durante cerca de 60 anos Miguel Torga andou por ali, «de terra em terra, com as tripas na mão. E a este Barroso vim parar! O problema, agora, é estar à altura das alturas, onde me encontro». Escreveu isto em 17 de Junho de 1956, em Carvalhelhos, porque «a doença tem-me dado muitas horas amargas». Nos anos anteriores frequentara as termas do Gerês. E numa dessas incursões, em 28/5/1955, já ele descobrira Negrões, onde exarou a primeira mensagem Barrosã: «Nada existe aqui de notável a testemunhar uma vida humana superior ou singular. Seres esquemáticos, num ambiente esquematizado... Talvez seja a própria pobreza do meio que, despindo-os de todo o acessório, lhes evidencie a essência...»
Talvez tenha sido em Barroso, onde Miguel Torga mais humanizou as Gentes transmontanas que fizeram dele e da sua obra, a epopeia telúrica que desafiará séculos e que deixará remorsos no Júri da Academia Sueca por não atribuir a essa obra, o Prémio Nobel que foi ter a mãos impuras e a mentes diabolizadas.
As Câmaras de Montalegre e de Boticas (que foram as medievais Terras de Barroso) tiveram o bom gosto de dar as mãos, num projecto conjunto e original: reunir num pequeno livro (de 48 páginas) a cores e em papel de luxo, os 28 «diários» que entre 28 de Maio de 1955 e 1 de Setembro de 1991, escreveu e localizou em diversas aldeias (e nas duas vilas). São outras tantas reflexões universais que o poder político actual esculpiu em bronze encastoado no granito e, que já foram, ou vão ser fixadas, no centro de todas essas aldeolas de Barroso que Torga registou. Um roteiro simbólico que honra os seus naturais, residentes ou ausentes e também os visitantes e investigadores mais rigorosos do pensamento Torguiano. Nas palavras introdutórias desse roteiro escrevemos nós: «entendemos condensar nestas páginas as referências que Torga eternizou nos seus (16) Diários. Desde há vários anos era nosso desejo propiciar aos Barrosões esta recolha em que cada parágrafo é um hino à grandeza telúrica e humana das Terras de Barroso. O Prof. Orlando Alves, vereador da Cultura da Câmara de Montalegre, corroborou a ideia. O Dr. Fernando Rodrigues, Presidente da mesma autarquia, acolheu-a e ele próprio, num gesto de ancestral familiaridade telúrica, fez questão em partilhá-la com a Câmara de Boticas, cujo Presidente, Engº Fernando Campos, prontamente aceitou, numa indesmentível fraternidade que Miguel Torga teria aplaudido, se fosse vivo».
Obviamente, nós que sugerimos a ideia e coordenámos o volume que as duas autarquias patrocinaram, obtivemos da Doutora Clara Rocha e das Edições Dom Quixote, a cedência dos direitos autorais.
Montalegre já consubstanciara esse acto simbólico, numa chuvosa tarde de Novembro de 2007. Boticas, fê-lo, agora, e fê-lo muito bem. Os emigrantes das celebradas terras que Torga catapultou para o mapa universal, já poderão, nas férias que se aproximam, percorrer esses caminhos torguianos. E outros que o celebrado Escritor percorreu, para cumprir essa odisseia. Tive a felicidade rara, de, quando conheci Torga e lhe servii de guia, em oito anos consecutivos, sempre que vinha a Chaves fazer termas, como hóspede do Dr. Mário Carneiro, os três e mais o saudoso Padre Joaquim, de Serraquinhos, passarmos pela nossa casa paterna, (hoje nossa), em Codeçoso e aí saborear o caldo de couves e de carne de porco que minha Mãe fazia, tão bem. Nesse dia voltou esse lar a ser o albergue que fora, no séc. XIX: «Casa do Almocreve».
Nenhuma diarística registou sobre essa aldeia. O que terá acontecido com outras. Mas nos 28 registos que fez estão simbolizadas todas as aldeias e gentes das Terras de Barroso.
E de que forma! «Atrai-me esta amplidão pagã, sinto-me bem a pisar um chão em que o deus vivo de ricos e pobres, de alfabetos e analfabetos, é o toiro do povo. Um deus de cornos e testículos, que, depois de cada chega e de cada vitória, a gratidão dos fiéis cobre de palmas, de flores, de cordões de oiro e de ternura. Um deus que a devoção adora sem pedir outros milagres que não sejam os de força e da fecundidade, provados à vista da infância, da juventude e da velhice. Um deus a quem se dão gemadas e cervejas para que possa inundar as vacas de sémen, as moças de esperança, os moços de certeza e a senilidade de gratas recordações. Um deus eternamente viril, num paraíso sem pecado original».
Na lápide, ora fixada em Boticas, completa Torga, o destino deste deus viril: - «sabe o que acontece aos toiros vencidos? - não faço ideia. - Abatem-nos. - Porquê? - Porque deixaram de simbolizar o poder da virilidade. - Deviam fazer o mesmo a certos homens...»
Opinião de Barroso da Fonte

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