quarta-feira, maio 23, 2007

 

Homo Barrusanus

De um janelo do sobrado avistámos, na periferia da aldeia, a antiga escola, um dos muitos edifícios devolutos. Nota-se bem que já não há crianças há muito tempo. Vestígios de crianças só uma estrela na pontinha de um vidro; e lá dentro o resto de uma cartolina e duas minúsculas carteiras que, unidas, apoiam uma urna das eleições. O quadro negro ainda está fixado na parede e a mesa da professora permanece no mesmo lugar. No alpendre há grafites escritos a carvão. Um deles afirma: "Eu estive aqui". Outro confessa: "Onde estiveres, Maria, aí estará o teu Manel". Os portões férreos estão abertos e enferrujados. Quando há muito vento batem e são assustadores. O recreio, onde inúmeras crianças brincaram e devem ter sido felizes, jogando à bola repartidos por duas equipas: os do rego de cima contra os do rego de baixo, voltou a ser lameiro e a ser pastado por um rebanho.
Aquele lugar avivou-nos a memória e trouxe-nos recordações felizes da infância. Sorrimos quando reparámos numa pedra coberta de musgo, em tudo semelhante à da nossa escola, que servia de banco, onde nos dias frios desapertávamos as jaquetas, abríamos os braços e expúnhamos ao sol a máxima superfície corporal. Ai de quem nos fizesse sombra e nos privasse de uma nesga de sol! Mas quando abandonávamos o local e, de cima, vimos o espectro da escola abandonada, comovemo-nos de tal forma que, tal como Cristo a chorar sobre Jerusalém, derramámos copiosas lágrimas. Por isso, de olhos entumecidos e espírito ferido, divagámos pela aldeia sem destino.
Numa encruzilhada deixámo-nos guiar por um burro peado. O dono manco não seria capaz de o cavalgar se não refreasse a sua rebeldia com uma peia de cabedal. Enquanto o burro seguia o seu percurso a cambalear, imitando o andar sofrido do dono, nós parámos frente a uma casa de lavoura em ruínas.
Há coisas que, por serem mais resistentes, aguentaram o desmoronamento: as soleiras das portas e janelas e as esquinas das casas. A forte caixa do pão, intacta, resistira igualmente bem à passagem do tempo, pois o colapso do telhado não conseguiu abatê-la. É enorme, descomunal, para alimentar os muitos filhos e fazer face ao Inverno e aos longos intervalos com que o dono cozia. Pão nunca devia ter faltado naquela casa! As portas, uma das quais sacralizada por uma cruz pintada a vermelho e trancada, permanecem bem fechadas à chave, mas não guardam nada, pois as paredes desmoronaram-se e o telhado ruiu. O colapso do telhado arrastou consigo os tirantes e o que eles suportavam, os quais arrastaram consigo o tear e tudo isso se abateu sobre o carro das vacas guardado no meio da corte. Ruína completa.
Há muito lixo deitado pelos vizinhos, pois as casas que abatem são vistas pela vizinhança circundante como um enorme caixote do lixo: monte de batatas podres, penas de pita, caixas de papelão, caldeiros de plástico gastos e ossos de assuã bem rilhados. O musgo e os líquenes alastram pelas paredes sombrias. Do lado de fora há uma moreira de lenha de carvalho desalinhada.
Lá de dentro, ouvimos o estrépito de botas a arrastar na calçada que se aproximam e vimos passar, frente à abertura do antigo portal, a coxear, um ancião com quem desejamos falar. Transporta numa mão ração no balde que já foi da tinta e na outra mão a grande chave do palheiro. No largo da rua, ornamentada por umas alminhas, descobriu a cabeça em sinal de respeito e balbuciou uma curta oração pelas almas do Purgatório. Alcançámo-lo:
– Posso tirar-lhe uma fotografia?
– Pode. Você donde é?
Respondemos, mas o ancião não percebeu.
– Como? Eu ouço mal.
Afinal não é só manco. Temos de repetir ao ouvido. Pedimos que nos deixe ver o que resta da sua casa de lavoura, agora escangalhada, mas outrora afamada e cujo nome corria por essas aldeias fora. Entrámos no pátio. As actividades do passado ecoam por toda a parte. O carro das vacas jaz desmontado a um canto: o chedeiro está encostado na horizontal e o eixo ao alto, uma roda serve de base, a outra serve de mesa e apoia o antigo balde da ração e fios de fardos. Na ranhura do rodado equilibra-se mal um gadanho enferrujado. No fundo do pátio, apoiada em estadulhos cravados na parede, jaz uma escada e, por baixo, uma zorra encostada. Um dos estadulhos também suporta uma corda apanhada.
A corte soturna, onde já foram alojados quatro vacas, tem agora como inquilinos o burro do dono e três ovelhas que o acompanham para todo o lado e ao qual reconhecem como guia. Para matarem o tempo da longa permanência na corte, distraem-se ora consumindo o alimento que o seu dono deposita no presel e no caniço, ora espiando a rua. Quando ouvem o estrépito de alguém a aproximar-se, metem os focinhos húmidos nos buracos da porta, por onde penetram pedaços de claridade, contraem as narinas e daí sondam a rua que sobe. Ao lado era a corte dos porcos. Ainda lá estão as pias, uma esculpida na laje, de pedra amovível a outra. Uma lâmpada fundida encravada num buraco é o único vestígio de modernidade.
No sobrado, as caixas de madeira, que outrora albergavam o enxoval, estão vazias. A sua dona, consciente do seu valor, transferiu-o para lugar seguro e seco e não quis que ficasse maculado pela humidade ou que fosse pasto para ratos e insectos ou ainda que sofresse as duras consequências do desmoronamento. A velha tranca por trás da porta ainda lá está. Por cima dos tirantes jaz um serrão esquecido, e na soleira da janela há lâminas de barbear e um espelho partido dependurado na janela. Era ali, no sítio mais iluminado, junto à janela, que o dono se barbeava uma vez por semana, aos sábados. Se o espelho partisse, ele praguejava e lamentava a grande perda, servia-se do pedaço maior e atirava os pequenos à rua. Se o pedaço maior voltasse a partir, ele voltava a fazer o mesmo.
Parece que aquela morada foi abandonada à pressa, pois há objectos completamente deslocados: um pote a um canto do sobrado sem uma perna e sem testo; um jugo vermelho envolto em sogas a um canto da despensa; um velho ferro de engomar a brasas no nicho da parede da corte; um par de molhelhas roídas e uma pipa desfragmentada a um canto da varanda.
A voz do vento entra em todos os lados e assobia ao passar, forçado, pelas friestas. Uma portada de madeira, impelida pelo vento, bate assustadora e quebra o silêncio da tarde.
Saímos pela porta das traseiras que dá para a rua Nova. Todavia, não prosseguimos por esta rua para não ter de passar frente aos pardieiros de bloco caiado, casas que deviam ter caído. Preferimos contornar a casa e seguir pela rua da Fonte Fria, mais autêntica. Aparece primeiro uma belíssima fonte, onde parámos para nos refrescar. E quando nos erguíamos, saciados pela bebida e dispostos a louvar a frescura de tão cristalino líquido, vimos, mesmo ali ao lado, todo de granito, o forno do povo. É uma construção feita à prova de fogo. As robustas paredes, fortalecidas pelos contrafortes, são sólidas para aguentarem o lajedo de pedra. Apesar das humidades que descem do tecto, não se vislumbra para já o desmoronamento.
No exterior, a um lado da porta de entrada, há uma pia onde eram mergulhados os vasculhos sobreaquecidos que limpavam a fornalha; do outro, uma pedra cravada na parede e saliente, servia para as pessoas que transportavam a massa levedada, da cozinha para o forno, pousarem ali os pesados cestos e aliviarem as costas! Por vezes, o alívio do dorso era acompanhado de uma imprecação: "Rai’s partam o cesto, que pesado!".
Lá dentro, destaca-se o enorme tendal onde, sobre palha eram estendidos lençóis de linho e sobre estes, depois de polvilhados com farinha, era estendida e moldada a massa. Quando eram vários os vizinhos a cozer em simultâneo, as mulheres faziam sinais diferentes ao seu pão: uma usava a travessa dos cabelos, outra espetava um trocho, outra não usava nada. As pedras da fornalha, brancas de sobreaquecidas, contrastam com a negrura da ampla câmara do forno, terrivelmente enegrecida e em terra batida, onde decorria todo o labor rural. Um nicho na parede, servia para depositar a garrafa de vinho. Candeia ou lanterna punham-se altas, dependuradas por um trocho espetado na parede.
Ali, depois de metido o pão no forno, foi rezada inúmeras vezes por bocas famintas esta oração em forma de sextilha rimada: "Cresça o pão no forno / E a graça de Deus pelo mundo todo / E as fazendas de seus donos. / Que nós a comer / E ele a crescer / Não o possamos vencer".
Em toda a decadência da aldeia, a igreja é aquela que mais se tem aguentado e a menos descaracterizada. Ali os fiéis homens colocam-se de um lado, as mulheres do outro. Nos lugares da frente, mais próximo do sacerdote e depois do arco da igreja só há homens. O cemitério é sem dúvida, o que mais prospera. A mais recente obra da aldeia, que trouxe algum alívio aos vivos, foi justamente o seu alargamento.
Mais à frente há um moinho em ruínas. Poucas penas do rodízio se mantém fixas. A grande mó de baixo mantém-se no mesmo sítio, ainda que coberta de musgo, e a mó de cima está encostada a um canto. O telhado abateu e arrastou consigo a moega, a caixa piramidal invertida onde o cereal era depositado. O trautear do seu tarambolho era dos mais belos sons humanizados de Barroso. As silvas cavalgaram as paredes e invadiram o interior. Parece que aquele moinho foi estrangulado pelas silvas de muitos picos.
As sombras dos fins de tarde descem céleres e cobrem a aldeia com o seu manto negro. À noite já só há uma dúzia de casas iluminadas por luzes pardas quase a apagarem-se e habitadas por velhos e inválidos, moradores de aldeias que não desapareceram, mas sobrevivem como cultura diminuída.
Por Manuel Ramos

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